O pêndulo vai, e leva com ele um rosário de certezas, de posições cerradas, de mandamentos. Mas aí o pêndulo volta – sempre volta –, e tudo o que parecia inquestionável passa a ser negado, descartado.
Esse preâmbulo poderia se encaixar em muitos cenários, diversos temas. Mas, no caso, estou me referindo a coisas que tenho visto sobre transformação pessoal, sobre positividade (a dita tóxica, mais especificamente), sobre coaching. Parece que estamos ‘no retorno’, no movimento reverso, na ressaca.
É difícil buscar o ponto de equilíbrio. Puxando para a área com a qual lido, a gastronomia, o vai-e-vem tem sido uma constante. Vejamos, aleatoriamente. Ora o menu-degustação é o suprassumo, ora é declarado morto. Ora a onda é cuidar de um fermento natural com todos os rigores – mimos, babás, hotéis, ingredientes especiais –, ora é bobagem, faça-se de qualquer jeito. Ora o glúten é vilão, depois já não se sabe – assim como condenaram (e depois absolveram) ovo, bacon, manteiga, café. Foram e são muitos os antagonismos que presenciei, que porventura debati, ao longo de tanto tempo de janela como jornalista, depois como curador, consultor etc. O ponto de vista radicalizado rende likes, atritos, lacrações. A busca por visões e opiniões balanceadas, por sua vez, pode ser tediosa, e sempre cobra mais esforço: exige pensar, ponderar, ouvir o contraditório. Fórmulas feitas e palavras de ordem nos poupam da complexidade.
Falando agora do universo de carreiras e do empreendedorismo, eis que surgem a demonização do processo do coach, a execração da ‘positividade’ e outras coisas mais, que se opõem diametralmente àquilo que se colocava como tendência, até pouco tempo atrás. O que parecia cristalino e incontornável agora é nefasto, é charlatanismo, é cafona. Uma hora ou outra, sabíamos que a ressaca chegaria – e, convenhamos, está/estava demais. Quero contribuir com o debate deixando alguns centavos.
Um exemplo, retomando o raciocínio a partir da comida: o menu-degustação é intrinsecamente ruim? Ou bom? Não. A questão é que ele deveria ter momento e lugar adequados para ser oferecido. Há quem o faça com brilho, há quem apenas o vulgarize. Hoje em dia, talvez ele seja caro, talvez exija um tempo que as pessoas não tenham mais. Porém, acima de tudo, ele deveria fazer sentido, seja como entretenimento, como provocação sensorial ou como expressão de uma filosofia de cozinha. A culpa é dele, em si, pelo uso equivocado e massacrante da proposta? Não. Mas, quando surgiram os menus de, sei lá, hamburger, de brigadeiro, de qualquer coisa, não podemos negar que a iniciativa teve seu nome dolorosamente maculado. Excessos e, principalmente, embustes, distorcem qualquer conceito.
Então, coaching é besteira, é vigarice, é caça-níqueis? Se você contrata um mau coach, sem preparo, sem vivência, sem qualificação (e eles parecem estar se multiplicando...), obviamente é. Se você está interessado em prestidigitação, em milagres, talvez esteja redigindo de próprio punho uma autorização para ser enganado. Mas se você trabalha com alguém bem formado, tarimbado, e experimentado no manejo das ferramentas de desenvolvimento humano e profissional, não é besteira. Há método, há consistência, há trabalho duro na aplicação de técnicas. Assim como no processo psicoterapêutico, não existe a ação de um mago: é você que, a partir de orientações bem fundamentadas, realiza suas próprias transformações.
Recorri aos serviços de uma – ótima – coach – quando me percebi desorientado, desmotivado, indeciso. Foi em 2012. Voltei de férias e, pela primeira vez, senti que não queria retornar ao trabalho. Resolvi investigar o que acontecia. Eu estava numa encruzilhada, não sabia se deveria continuar traçando um caminho como executivo no jornalismo, na ‘vida corporativa’, ou enveredar por outra trilha, que, na falta de termo preciso, chamarei de mais ‘artística’, pessoal, autoral. Só que parecia tudo turvo, nublado, embaçado.
Pois foi o coaching que me permitiu trazer à tona todas essas questões. Consegui olhar mais acuradamente para mim mesmo, verbalizar o que queria, entender o que não queria. Percebi que estava cansado de ‘gestão’ e precisava apostar em ‘criação’. Fui capaz de reconhecer o que eu tinha de bom, de forte, de eficiente, em vez de simplesmente sofrer por aquilo que eu não era ou eu não tinha. O processo, em resumo, usando parâmetros adequados, e sob a sensibilidade e a sabedoria da profissional, me forçou a buscar autoconhecimento. Não que eu não soubesse de meus traços de personalidade, de minhas características mais evidentes – gostando delas ou não.
Mas o trabalho duro feito em sessões, em ‘deveres de casa’, com leitura e escrita, em reflexões (muitas vezes doídas) me ajudou na construção de uma outra (auto) consciência. Um ano depois, numa saída negociada, eu deixava um cargo de nível executivo para uma planejada transição rumo a outros destinos, como autor de livros, consultor, curador, palestrante, criador de conteúdo. Foi bastante gratificante. Em nenhum momento me foi prometido que eu me tornaria um homem de ferro, um iluminado, uma pessoa que eu nem era nem jamais poderia ser. Eu apenas passei a me conhecer melhor, a entender meus limites. Incorporei alguns truques e desenvolvi, é fato, novos recursos – para me apresentar, defender meus pontos de vista, negociar etc. Mas nada que não se baseasse no respeito comigo mesmo. Eu aprendi a identificar com um pouco mais de clareza o que eu desejava e o que podia fazer. Tornei-me um pouco mais livre, um pouco mais seguro. O que não é nada desprezível.
Em síntese, eu tive a sorte de passar pelas mãos de uma pessoa séria e talentosa (como deveriam ser todos os terapeutas, médicos etc). E não de alguém com pendores para formular chavões do tipo ‘basta querer, e você será’, ou ‘você pode tudo’, ou ‘você só perde para você mesmo’ e afins – a lista é longuíssima.
Uma coisa é expandir fronteiras, é combater aquilo que nos restringe. Ou, vá lá, ter energia para apostar em sonhos, coloquemos assim (sonho é bom; já a ilusão, é mais perigosa). Outra é virar um outro ser humano, converter você mesmo numa criatura diferente, desprovida das suas travas e amarras. Relato um exemplo muito pessoal, num outro âmbito da vida.
Aprendi a dirigir com dificuldade, tirei minha licença bem depois dos 18. Só aos vinte e tantos resolvi encarar o cipoal de medos/traumas/inseguranças que, na prática, atrapalhavam minha vida. Deu trabalho, mas rolou. Não me tornei piloto, não sou o cara da ‘fast lane’, o ás da pista da esquerda. Conduzo bem um automóvel, com segurança e dentro das regras de trânsito. Só não sei correr, nem me meto a isso. Aí já seria demais para mim. Indo além, lembro de relatos publicados na imprensa, muitos anos atrás, sobre pessoas que, à base do mais famoso antidepressivo da época, perdiam medos e freios – inclusive aqueles que garantiam alguma proteção. Um deles tratava de uma pessoa que tinha pavor de altura, vivendo assim por décadas. Até que o remédio, gerando uma sensação inédita de coragem e confiança, permitiu que ela fosse a uma festa no alto de uma cobertura – e de lá se atirasse, num impulso incontrolável, numa queda fatal. Com o perdão da analogia um tanto trágica, o que eu quero dizer é que enfrentar limites exige coragem – mas não implica renunciar ao respeito consigo mesmo.
No universo do empreendedorismo, fascinante e, ao mesmo tempo, implacável, tornou-se clichê exigir do postulante a empresário coisas do tipo: uma revolução por dia; uma transformação por hora; uma reinvenção constante; um aperfeiçoamento incessante; comece às 4h, vá até meia-noite. Contudo, acho que tamanha pressão, tamanha carga, vai mesmo é nos legar AVCs, úlceras, tumores, infartos (ou burnouts, para ficar num termo mais contemporâneo). Inquietação, atualização, mente aberta, tudo isso é muito importante, é combustível para seguir adiante. Mas essa exigência do ‘novo eu’ a cada dia é uma violência, uma brutalidade. É a meta que não pode ser batida.
Não bastasse o ‘novo eu’, tem aquela fórmula do ‘você pode tudo’. Não pode. E isso, para minha sorte, quem tem me ensinado é o pão de fermentação natural: ele tem seu próprio tempo, que é longo, e exige respeito à natureza, aos métodos. Não dá para acelerar, não dá para estalar os dedos e ter tudo pronto. Ou você é atencioso com o processo, ou não colhe o resultado pretendido. Não podemos tudo, embora possamos muito. Não basta querer para ser, embora querer, treinar, tentar, cair e levantar sejam sempre vitais.
Assisti a uma palestra do chef peruano Gastón Acurio, em Lima, anos atrás, para uma plateia de jovens. Em certo momento, ele perguntou algo mais ou menos assim: “Quem quer ser o novo Gastón Acurio?”. Quase todos levantaram a mão. E seguiu: “Tenho uma má notícia. Não vai dar. Gastón Acúrio já existe, e sou eu. O que vocês poderão ser é vocês mesmos. O que também será ótimo, quem sabe melhor ainda”.
Há empreendedores que verbalizam, sem pudores, ‘quero ser fulano’; ‘quero abrir a nova casa tal e tal’. O mais traiçoeiro é que isso – ser um outro, copiar um outro – pareça mais sedutor do que mergulhar em si mesmo em busca da singularidade, de algo que faça sentido considerando aspectos mais profundos da personalidade. Como almejar ser o 'novo Elon Musk' sem considerar histórico pessoal, afetos, gostos, aspirações, as cicatrizes que cada um carrega? Você pode aprender muitas coisas com os seus ídolos. Ter referências e inspirações é de fato fundamental. Só que é preciso saber o que fazer com isso, como usar em benefício de si mesmo. Algo que dá trabalho, dá medo, dá preguiça, dá incerteza.
A realidade: não haverá como não se esforçar muito, sempre. Será necessário um bocado de trabalho, todos os dias. E não vai dar para você se transformar naquilo que bem desejar, pura e simplesmente. Mas é possível avançar muito no redesenho de limites, no abrandamento de deficiências, na correção de lacunas. E bons terapeutas, analistas, consultores, professores, cada qual à sua maneira, podem ajudar muito.
Estamos todos tendo de lidar com o cansaço, com os desafios cotidianos, com a busca por soluções para problemas antigos, com a necessidade de achar perspectivas de futuro. Não precisamos do peso extra da metamorfose incessante, da criação de uma identidade nova a cada jornada. E me parecerá sempre melhor investir em capacitação, não em mistificação; em autoconhecimento, não em autodestruição – ou quase isso, na esperança de que ‘do zero’ surja um novo personagem.
É preciso ter cuidado com aquilo que é superficial. E cuidado principalmente com essa conversa de ‘uma revolução por dia’ – sob o risco de você não chegar até amanhã.
(ps: escrevi o texto num impulso; tanta gente sofrendo, tanta gente girando em falso (e tanta empulhação)...; não tenho a pretensão de bancar o sabichão nem de que ele seja útil para alguém; mas quem sabe).
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